O exercício de Pintura de Sérgio Fernandes


about Fundo sem Fundo exhibition, by Joana Duarte, July 2022


Existe uma espécie de misticismo enigmático inerente ao trabalho de Sérgio Fernandes. Uma aura emana das suas pinturas quando somos confrontados com elas. Intimidam-nos ao mesmo tempo que nos atraem. A experiência de percorrer a exposição “Fundo sem fundo” é tão perturbadora quanto arrebatadora. Tentar compreender o porquê deste sentimento é um desafio difícil, no entanto podemos olhar para as escassas pistas que nos vai sugerindo, enquanto pintor, enquanto pessoa, para tentar encontrar algumas respostas.

O interesse profundo que nutre pela disciplina da Pintura é evidente. Não apenas pela enorme profusão de peças que executa - para esta exposição produziu mais de quarenta pinturas no período de apenas um ano - como pelo resultado final de cada uma. Qualquer um se comove ou sente repulsa ao vê-las individualmente ou em conjunto. Este facto é revelador.

Na portada de uma das janelas do seu atelier lê-se escrito à mão “o máximo da pintura é o inefável”. Confidencia que a procura incessante pelo indizível no sentido de elevar a pintura a uma condição divina, religiosa, e atingir um estado iluminado conduz o seu trabalho enquanto pintor. Desde cedo que explora o interesse que tem pelo Oriente e pela importância dada a uma dimensão espiritual através da prática do yoga, da meditação e do surf. O seu trabalho espelha todos estes hábitos, sempre solitários, que se encontram em comunhão com a pesquisa que desenvolve discreta e compulsivamente no seu atelier. Tem uma exigência, nunca se deixa ver pintar.

A tentativa de alcançar uma condição superior na pintura passa por uma meticulosa e demorada investigação técnica, alquímica, que assenta na cor e na perceção visual. Inúmeras experiências acompanham um longo processo beckettiano de tentativa e erro, camada sobre camada, sobre camada, sobre camada...percurso lento e solitário que o leva a questionar-se acerca da derradeira possibilidade, ou certeza no percurso de vida de um pintor, da pintura o matar (“yes, I know that painting eventually will kill me”) ou, pelo contrário, acerca da possibilidade de ele a matar primeiro (“or maybe I’ll kill her first...who knows?”).

Apesar de trabalhar sempre em silêncio, a música é um elemento fundamental que o acompanha neste processo. É hábito sentar-se somente para ouvir álbuns inteiros. O blues e o rock são estilos de eleição que o atraem por motivos diferentes. O blues que teve origem na cultura afro-americana e nas canções que acompanhavam o trabalho escravo, acarreta uma carga e intensidade trágica e melancólica que lhe interessa. Howlin’ Wolf, Son House ou Robert Johnson the devil man são apenas alguns dos nomes que destaca. Já no rock, admira a liberdade e loucura que lhe é associada em contraste com o rigor e disciplina de grandes músicos que integraram bandas como Led Zeppelin, Pink Floyd, The Doors ou Nirvana.

É muitas vezes nestes estilos musicais que encontra as palavras ou expressões mais acertadas que dão nome às suas pinturas. Para além de na música, encontra-as também na cultura brasileira dos anos sessenta e setenta, que sempre o fascinou, nomeadamente nas manifestações artísticas de vanguarda, como a Tropicália, o cinema marginal e a poesia concreta, citando figuras como Torquato Neto, Waly Salomão, Ivan Cardoso ou Hélio Oiticica.

Por outro lado, o estudo do trabalho de outros pintores resulta em pinturas, desenhos e esculturas que lhes dedica, homenageando-os. É o caso da luz dos espaços interiores de Vilhelm Hammershøi, das janelas e ateliers de Henri Matisse, da carga espiritual e onírica de Forest Bess, dos estudos de cor de Josef Albers, dos símbolos de Jean Michel Basquiat, da luz de Rembrandt ou dos tons negros de Fernando Calhau.

Merece a pena ver e voltar a ver as pinturas de Sérgio Fernandes, já que a cada circunstância descobrimos ou vemos algo novo. A observação requer tempo e predisposição já que cada peça demora a revelar-se desencadeando sentimentos e emoções, por vezes contraditórias, que possibilitam a imersão do observador em algo metafísico, próximo do sublime. O trabalho de Sérgio Fernandes é enigmático, misterioso, por vezes obscuro e anuncia uma passagem para algo, para uma ideia de infinito, para o vazio, vazio que remete para o início de tudo, para uma condição pura e genuína ou para a verdade básica da vida que é o seu sentido de tragédia. Ao mergulhar no silêncio, escuta-se o ruído do blues, do rock ou da Tropicália de cada um.

A exposição “Fundo sem fundo” é acima de tudo, segundo as palavras do artista, uma exposição de pintura sobre Pintura. Regista uma busca pelo inefável, uma passagem, um caminho para o atingir, ou talvez materialize o alcance dele. Cabe-nos a nós decidir.
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