Royal Blue nº 224


by Magda Delgado, 2014


O encontro entre os dois artistas já se tinha dado antes, uma contaminação pictórica inesperada a pretexto de alguns frascos de tinta permanente azul ofertados e usados em cadernos. Esses grafismos são conteúdos privados, escapam-nos aqui. Não sabemos se aparecem em forma de palavra, de estudos, de obra acabada. Mas, sem saber as formas sob a qual se apresenta este suco, podemos vislumbrar páginas infindáveis de Royal Blue nº 224 da Sanford’s sobre branco, possivelmente em cadernos A5.

Apesar de serem para nós um mistério as formas que precederam o encontro nesta exposição, a marca imagética provocada pela cor na mente dos artistas, revelou-se na agnição do azul presente no interior da carpintaria. Esta ligação pictórica terá permitido o reconhecimento do lugar e contribuiu certamente para o à vontade na sua ocupação.

A exposição tem, para quem espreita de fora, apenas duas imagens. É então que a escala poderosa das telas
faz-nos reparar na dimensão deste espaço que abrigou a sua execução. A arte espelha sistematicamente a área do atelier e, neste caso, sentimos paisagem colossal, temperamental na imensidão rectangular com que o nosso corpo se depara. Os outros corpos que antecederam o nosso ali — o dos artistas — não têm uma escala coincidente com a do trabalho. Esta desproporção remete para questões de performance, de luta do corpo com a matéria, ou se quisermos, com a paisagem.

Esta exposição é uma continuidade muito fluida dos dois percursos individuais, não há qualquer ruptura com os antecedentes para se dar este encontro. Ambos são apaixonados pela matéria, pela contemplação da natureza selvagem, pujante. Aqui, cada um com os seus olhos estão num mesmo barco, em alta maré violenta e, cada um com um remo. É um desafio vivido lado a lado (curiosamente, a posição relativa dos artistas aquando da execução das telas), mas depois exposta num frente a frente, como duas experiências distintas e numa fase já pós-racionalização do mesmo confronto com a imensidão da superfície. As duas áreas onde se detém o nosso olhar cativam-no também pela imanência deste preenchimento, com o trabalho de um corpo que sente as dores ou cansaço provenientes desta insistência, um corpo que se vê muito próximo de uma imagem consideravelmente maior e luta para ter consciência do todo.

As viagens aos ambientes tropicais dos autores trouxeram marcas em ambos: uma ligação cada vez mais ligada a uma visão ancestral, tão presente nos vídeos expostos numa sala pequena dentro do enorme espaço da carpintaria e, que se distingue neste, pelo exterior pintado de azul. Nos vídeos de Sérgio Fernandes apenas o olhar toca as coisas intangíveis, solenes na sua perenidade em relação ao Homem, irradiando uma visão transcendente, ascendente. O vídeo de Joana Gomes, foca de cima para baixo ou de frente, sobretudo tudo o que é perecível, de igual para igual. A própria imagem de um céu distante no início, reforça a sensação de visão, de abandono do Céu e sobreposição de uma realidade terrena, como uma imagem do início de Tudo ou do Fim. A realidade sugerida
toca-nos pela sua imanência, pela mortalidade, pela sensação de sobrevivência. Nos vídeos de Sérgio Fernandes avançamos para o infinito, nos de Joana Gomes, recolhemo-nos a nós mesmos. Em ambos mais uma vez, há uma ligação com a imensidão em relação ao corpo e para isso nada melhor que pensar em Azul: Royal Blue nº 224.

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